Cultura de Medo

André Levy
 

André Levy

“Claro que um povo não deseja a guerra. Mas no fim de contas, são os líderes de um país que determinam a política, e é sempre uma questão simples de arrastar o povo, quer se trate de uma ditadura fascista, um parlamento ou uma ditadura comunista. Tenha ou não uma voz, um povo pode sempre ser levado a seguir os seus líderes. Isso é fácil. Tudo o que há que fazer é dizer que estão a ser atacados, e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo, e expor o país a um grande perigo.” Estas palavras do Nazi Herman Goering, proferidas em privado, enquanto decorriam os Julgamentos de Nuremberga, ressoavam na minha mente quando vivi nos EUA, presidido por George W. Bush, após o 11 de Setembro, pois Bush seguiu as palavras de Goering à letra.

Mas a cultura do medo não é usada apenas para conduzir um país à guerra. Pode ser um instrumento de propaganda numa democracia para desviar a atenção da população dos reais problemas que o afectam. Com os actuais monopólios dos meios de comunicação social facilmente se gera medo, por vezes exagerando o perigo. Nos EUA, nas últimas décadas, o número de notícias sobre crimes de sangue aumentou, apesar das estatísticas demonstrarem que a criminalidade estava efectivamente a diminuir. Em Portugal, nos últimos meses, temos também assistido a um proliferar de notícias sobre crimes, sempre sem contextualizar essa possível crescente de criminalidade com o agravamento das condições sociais e económicas.

Vem isto a propósito do metralhar de notícias sobre a suposta pandemia da Gripe A. Todos os dias ouvimos casos de mais pessoas infectadas, num qualquer lugar do mundo. Menos se ouve sobre as condições de vida dessas pessoas, ou a taxa de mortalidade da infecção, como se contrair a doença fosse equivalente à morte. Há uns anos houve uma vaga semelhante incutindo o medo em torno da “gripe das aves”, o H5N1. No entanto, de 2003 a 2009 o número de mortes devido a esse vírus, a nível mundial, foram de 262. Um número minúsculo quando comparado com o número de fatalidades da gripe humana comum que, só nos EUA, atingiu cerca de 36 mil pessoas, e cerca de meio milhão de pessoas mundialmente. No entanto, não ouvimos notícias quando novas pessoas contraem a gripe comum, nem se acompanha o seu alastramento pelo mundo, nem se usa o termo pandemia, embora ela tenha efectivamente impacto mundial. A actual Gripe A foi responsável este ano pela morte de 476 mortes entre 99,103 pessoas infectadas, isto é menos de 0.5 por cento de mortalidade. Não digo que as instituições de saúde não acompanhem a progressão da doença, que as pessoas não tomem cuidados (aliás em todo semelhantes aos cuidados contra a gripe comum). Mas a forma como a comunicação social e os líderes governativos fazem uso da doença para propagar o medo é injustificada e injuriosa.

Quem mais tira proveito do medo incutido são as farmacêuticas que vendem os antivirais. A transnacional Roche vendeu milhões de doses do seu famoso Tamiflú a vários países, onde a real causa da morte após infecção são factores sociais e económicos: a falta de sistemas de saúde eficazes e a subnutrição da vasta maioria da população.