A carta viciada

José Neto
 

José Neto

Ainda não se apagavam os ecos da sentença do Tribunal de Sintra, já o (ainda) presidente do município de Oeiras passava ao ataque, garantida que estava a suspensão da execução da mesma pelo “respectivo” recurso para tribunal superior. Foram então os munícipes brindados com uma carta de campanha, em que confirmava aos oeirenses, por entre o auto-elogio e a propaganda, a sua recandidatura a novo mandato, determinado a manter o rumo, apelando a que a “jornada” não seja interrompida.

Lida e relida a missiva, debalde se descortina uma palavra, uma referência, subliminar que seja, à sua nova situação perante a justiça - não já o estatuto de arguido, mas o de condenado a pena de prisão. Se sobre a auto-suficiência e até a arrogância da atitude o escrito fala por si, e  o acto fica com quem o pratica, já o sentimento despudorado de impunidade  é politicamente relevante, significativo e muito preocupante. E um triste sinal dos tempos que vivemos.

É certo que se trata de alguém que perante o tribunal, e para se justificar, utilizou expressões como "não paguei porque ninguém paga" ou "o bom português é aquele que consegue fugir ao Fisco". Mas o caso é o de um alto responsável autárquico, sobre quem o colectivo de juízes concluiu ter revelado “total ausência de consciência crítica como cidadão e como detentor de cargo político", e que, mais grave, de 1990 a 2003, como presidente da Câmara Municipal de Oeiras “fez uso de cargos públicos para obter benefícios financeiros”. E que, por isso, com provas, o tribunal colectivo de Sintra o condenou - pela prática de um crime de corrupção passiva, na pena de 3 anos e 7 meses de prisão; por um crime de abuso de poder, na pena de 15 meses de prisão; por um crime de fraude fiscal na pena de 2 anos de prisão, e por um crime de branqueamento, na pena de 4 anos de prisão -  em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de sete anos de prisão efectiva, e na pena acessória de perda de mandato.

Sabemos que a condenação não é definitiva. Que a sentença transitada em julgado após as diversas (e cremos crer que legítimas) vias de recurso que o processo percorre, virá ou não a confirmar a decisão da primeira instância. Isto se no decurso dos prazos o processo não for apanhado pela prescrição.

Sabemos e respeitamos, temo-lo dito, o princípio e o direito à presunção de inocência.

De todo o modo, esta condenação, e esta sentença, pelo simbolismo de que se revestem, podem ser um passo positivo para a justiça portuguesa, no sentido de credibilizar o sistema judiciário, minado pelo sentimento instalado na opinião pública de que a impunidade reinante no crime organizado e no seio dos poderosos é inelutável.

É no entanto cedo para concluir que as coisas estão a mudar.

Temos afirmado (e já não somos os únicos) que a justiça é uma justiça de classe, que trata diferentemente os cidadãos. É uma evidência que as pressões do poder político (e, já agora, do poder económico) sobre o judicial são cada vez maiores e mais eficazes. E há sinais preocupantes – desde o crescente número de processos, julgamentos e até condenações pelo exercício de direitos legítimos, até aos quase inexistentes resultados no combate à grande criminalidade, ao crime económico e à corrupção.

Mas dizemos igualmente que a Constituição da República, a Constituição judiciária, contém um paradigma normativo que cria as condições para a realização da justiça em condições de igualdade.

É isso que os cidadãos reclamam. É por isso que o PCP e a CDU se continuarão a bater.