Os pontos nos is, já!

Vítor Dias
 

Vítor Dias

Desde há bastantes meses que, de uma forma tão absolutamente descarada quanto relativamente impune, está em curso com múltiplas e insistentes expressões nos media a laboriosa construção daquilo que considero uma das maiores falsificações políticas dos últimos anos.

Trata-se de, no quadro de apreciações, análises ou conjecturas sobre variantes de soluções governativas pós-eleitorais, atribuir às forças à esquerda do PS uma alegada atitude de antecipada rejeição de quaisquer acordos ou entendimentos e uma entranhada, radical e quase genética rejeição da possibilidade de virem a assumir eventuais responsabilidades governativas.

Mesmo quando tal contraponto não é expressamente formulado, está bom de ver que este juízo e caracterização das forças à esquerda do PS (e eu apenas falarei quanto ao PCP porque, em boa verdade, não poderia escrever exactamente o mesmo sobre as posições e discurso do BE), induzem inversamente a ideia de que já o PS seria uma pobre vítima da intransigência de terceiros e que, por ele, estaria sincera e activamente disponível para alianças ou entendimentos, de incidência governativa, com forças que estão à sua esquerda.

Dir-se-ia que uma data de gente, incluindo um ou outro politólogo que prezo bastante, por razões de idade ou por submersão pela onda, foram convulsivamente atingidos por uma amnésia do tamanho do Himalaia quer quanto a factos recentes quer quanto a uma longa história passada.

No domínio do recente, conseguem passar ao lado de que jamais o PS admitiu rever, tanto substancialmente como até acessoriamente, as suas orientações políticas fundamentais, sempre ancoradas à direita, e que jamais formulou com clareza qualquer disponibilidade para discussões ou exames conjuntos e responsáveis (estas coisas não se tratam com trocas de «bitaites» através da comunicação social !) sobre fórmulas  de entendimento que sempre teriam de ter como pressuposto básico um significativo corte com as políticas estruturantes por si realizadas.

Já quanto ao passado mais distante, haveria tanto para dizer que nem por sombras pode caber neste espaço. Mas, ainda que de raspão, talvez se possa lembrar aos que não sabem (há-de haver !) e aos que não gostam de lembrar ( oh, se há !) que, em 1976, PS e PCP somavam 59,28% dos votos e o que se seguiu foi primeiro um governo minoritário do PS e, pouco depois, uma coligação com o CDS; que, em 1983, PS e PCP somavam 54,18% mas o que se seguiu foi uma coligação do PS com o PSD; que, tanto em 1995 como em 1999, PS e PCP somavam cerca de 53% dos votos e o que, por duas vezes, se seguiu foi a formação dos governos minoritários de A. Guterres, anunciados logo na manhã seguinte às noites eleitorais sem qualquer contacto ou reunião com o PCP. E tudo isto para já não falar nessa página vergonhosa da história do PS ocorrida em 1985, já com Cavaco Silva como líder do PSD e primeiro-ministro, quando o PS, nas autárquicas de Dezembro desse ano, fez cerca de 40 coligações eleitorais com o PSD em municípios de maioria CDU.

Naturalmente que cada um, militante partidário, cidadão comum, jornalista, comentador ou politólogo é livre de formular as suas próprias previsões ou conjecturas sobre possibilidades ou impossibilidades. Mas isso é uma coisa e outra é proceder desavergonhadamente a uma inversão de responsabilidades que pode dar agora muito jeito ao PS mas ofende a verdade e rasura impiedosamente a história recente e passada.

Talvez alguns digam que esta crónica se agarra a aspectos formais e que é fruto de um espírito miudinho. Julgo que erram em toda a linha. É que, a par de outras, a questão das políticas a realizar e a questão das responsabilidades não são matérias formais, são a carne e o sangue da vida, da acção e da luta políticas.