Acção Social e Gratuitidade do Ensino

Miguel Tiago
 

Miguel Tiago


José Sócrates procura bem fundo no baú das políticas de esquerda esquecidas algo com que possa iludir os descontentes. Lembrou-se de que a acção social é coisa que cai sempre bem e que sempre mascara o carácter insensível e socialmente despreocupado que define o actual Governo. Depois do castigo eleitoral que o PS sofreu, Sócrates e a equipa multiplicam-se em anúncios e propaganda para reaver, ou pelo menos tentar reaver, os votantes. E eis que uma vez mais traz à discussão, desta feita por anúncio em pleno debate quinzenal na Assembleia da República, matérias relacionadas com apoio a estudantes.
Importante matéria, sem dúvida, determinante aliás para o sucesso das tarefas centrais do nosso sistema educativo e do nosso sistema de ensino superior. Importante na medida em que não será possível assegurar a igualdade no acesso e frequência do ensino superior sem o necessário apoio social aos estudantes. Por isso mesmo, o PCP propôs ao longo desta legislatura e por várias vezes, o aumento da acção social escolar, quer através da discussão do Orçamento do Estado, quer através da apresentação de projectos concretos como o Projecto de Lei que estabelecia a isenção de propinas para estudantes em situação de dificuldade económica, a gratuitidade das residências estudantis, o apoio aos transportes públicos para estudantes, a diminuição do preço do prato social nas cantinas, entre outras medidas.
Curiosamente, ou não, foi o próprio PS que rejeitou liminarmente essas propostas do PCP alegando que todas as necessidades dos estudantes estavam a coberto da previdente intervenção do Governo e que não existiam casos de necessidade que justificassem medidas extraordinárias. Não foram precisos muitos dias para que o Governo viesse afinal a reconhecer que a necessidade existe e não é pouca. Apresentou-se então como atento e trouxe as suas propostas para suprir as necessidades que dias antes havia dito não existirem. Não fosse isto o habitual comportamento e método do PS e estranharíamos comportamento tão instável, certamente. Assim sendo, porém, quase ninguém reparou e muito menos a comunicação social que rapidamente apresentou as medidas do governo como novas. E há que reconhecer que são novas, mas perguntar se são as necessárias e as suficientes.
Anunciou o Governo que aumenta em 10% o valor das bolsas de acção social e em 15% para os estudantes deslocados. Ora, uma rápida olhada para os valores médios das bolsas dos estudantes do ensino superior em Portugal não tardará em fazer-nos perceber que é pequeno investimento para a propaganda que propicia. Na verdade, o valor máximo da bolsa é o equivalente ao do Salário Mínimo Nacional, valor auferido não pelos estudantes carenciados mas pelos absolutamente miseráveis. Por isso se contam “pelos dedos da mão” os estudantes de ensino superior que recebem bolsa máxima. Importa também reflectir se os valores das bolsas ao longo dos anos, tiveram a necessária valorização tendo em conta o aumento do custo de vida. Importa até verificar até que ponto as bolsas de acção social cobrem os custos básicos da frequência e não será preciso muito para perceber que necessário é rever os critérios de atribuição e cálculo das bolsas, alargar o número de beneficiários e o valor das bolsas e não apenas em 10%, principalmente quando o valor das propinas aumentou, em média, cerca de 20% nos últimos 4 anos de governo PS.

Anunciou o Governo que vai investir nas residências universitárias, através de concessões, palavra fina para dizer que as vai privatizar. Ou seja, não bastava a privatização da acção social através dos empréstimos bancários que já comprometem o futuro de 6 500 estudantes do Ensino Superior, não bastava a privatização dos bares e cantinas de praticamente todas as instituições, privatiza-se agora também a residência universitária. E o mais grave é que, mesmo depois dos exemplos tidos com os empréstimos – de endividamento e de substituição das bolsas por empréstimos para que os jovens possam ter acesso a um direito constitucionalmente consagrado como gratuito – mesmo depois dos exemplos tidos nos bares e cantinas privatizados – de flagrante diminuição da qualidade do serviço e encarecimento dos preços dos pratos e artigos não abrangidos pela ASE – o governo persiste na fórmula da privatização.
Sobre o preço do alojamento social e do prato social, o governo limita-se a anunciar que não os subirá no próximo ano, quando na verdade mais não faz senão o estritamente exigível. Ou alguém aceitaria que o Governo decretasse aumentos dos preços em cantinas e residências, enquanto os estudantes continuam a abandonar os estudos por falta de capacidade económica?
Mas o mais importante referir é a volatilidade destas medidas de superfície que em nada alteram o essencial do sistema de ensino superior. Essencial que reside precisamente fora da esfera da acção social escolar, pois centra-se sobre a questão determinante do financiamento e da gratuitidade. Este Governo mostra uma vez mais que está disposto a tudo, até a abrir um bocadito mais os cordões à bolsa da ASE, para manter aquilo que é politicamente mais importante: a política de submissão do ensino superior aos caprichos do grande capital nacional e estrangeiro, mercantilizar e comercializar o ensino superior e torná-lo um gigantesco mercado, seguindo as orientações expressas pelo Processo de Bolonha e pela Organização Mundial do Comércio, aliás, como em outras esferas, seguindo com afinco o manual de instruções do neo-liberalismo que nos conduziu ao poço fundo da crise em que hoje nos encontramos.