O anti-desporto

Miguel Tiago
 

Miguel Tiago

Em Portugal há este gosto especial pelo desporto. Este gosto que se vê, por vezes, até pendurado nas janelas ou mesmo das antenas dos automóveis fazendo hastes, sob a forma de bandeiras nacionais. Em Portugal há uma política desportiva que estimula esse gosto, desde que ele nunca se converta em vontade de praticar desporto. Porque, na verdade, o desporto nacional não é o futebol, nem tampouco qualquer outra actividade física ou desportiva. O desporto nacional é afinal apenas “ver futebol” sentado no sofá, ou à mesa do café.
Confunde-se assim, com forte contributo dos sucessivos governos, desporto com indústria, actividade física com sedentarismo e consumo de publicidade. Se é, por um lado, compreensível que as grandes empresas, onde se incluem as SAD’s, procurem no desporto uma indústria lucrativa; não é, por outro, justificável que os governos alinhem nessa política do anti-desporto. Uma política desportiva para os portugueses não se pode traduzir nos meros patrocínios do Estado às competições nacionais e internacionais. Uma política desportiva para os portugueses deve ter como primordiais objectivos o alargamento da prática desportiva e a efectivação do direito ao desporto, à actividade física, à saúde e à qualidade de vida  para todos os portugueses, elevando a estrutura nacional de desporto, ao invés de criar uma “elite desportiva” profissional desportiva dedicada à alta-competição e ao alto-rendimento, sem que exista uma estrutura de prática regular e popular. E a política desportiva do actual governo nesta matéria, tal como o anterior, traduz-se essencialmente na transformação do Estado em mero organizador de eventos comerciais onde o desporto é apenas o pretexto para a angariação de clientes e do consequente lucro. 
Ver o jogo na TV, levantar a cerveja à boca, enfiar a mão numa taça de amendoins salgados, sentado no sofá enquanto se bate a cinza do cigarro é um ócio a que todos nos vamos habituando, mas é a síntese do anti-desporto. E é o resumo da política desportiva que vamos tendo em Portugal. Cada vez mais um povo espectador, cada vez menos um povo praticante.
Mais do que organizar europeus, mundiais, de construir infra-estruturas desportivas de elite, Portugal carece de uma estrutura nacional desportiva, de matriz popular e democrática, assente numa rede de infra-estruturas desportivas de livre acesso, numa promoção real do desporto escolar, do apoio ao associativismo desportivo e recreativo, no reforço dos equipamentos desportivos, municipais e nacionais. Para uma verdadeira política desportiva, é precisa uma política de esquerda, que coloque acima da indústria do lucro através do desporto o direito à prática desportiva democrática e massificada. Uma política desportiva que promova a alta-competição e o alto-rendimento a partir de uma promoção popular do desporto e da captação e detecção de talentos, ao invés de fazer da obtenção de medalhas o alfa e o ómega da sua intervenção.  Não será possível, enquanto o desporto se cingir ao negócio e à obtenção de lucro estimulando o sedentarismo, ou enquanto o desporto for apenas o pretexto para a organização de eventos comerciais e publicitários de grande envergadura, difundir a alargar a prática desportiva. Não será possível no quadro de uma política de direita, dinamizar uma política desportiva real, pois o desporto representa um importante vector da emancipação do ser humano, uma componente essencial da sua cultura integral.